Vai ter Copa, mas antes não a tivesse, por Elisabeth Zorgetz

Elisabeth Zorgetz
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Tenho um enraizado apelo por prefácios. Não posso evitá-los quando os sinto necessários, como no caso. Há muito tenho feito as leituras da desesperada – e angariada –  reação às injúrias contra o mundial da Copa. Indistinto em conteúdo ou forma, um se destacou aos meus olhos sobre esse decidido uníssono de prerrogativas, resumidamente porque parte da voz de uma juventude socialista que não se constrange em adjetivar a extrema-esquerda em tom pejorativo. Com um rancor que só a senilidade política poderia prover, o jovem que engrossa as fileiras governistas, aponta êxitos que talvez nem ele mesmo compartilhasse outrora, mas se regozija, inabalável, protegido pelas arestas de sua filiação. Atinge, nesse momento, um golpe da própria vaidade, invalidando premissas máximas da juventude: irreverência, novidade, aprendizado. Para ele, o jovem autorizado a questionar a ordem como está dada é só aquele dignifica a mesma, ou seja, aquele que sabiamente escolheu defender o “projeto”. O resto compõe um exército de tolos.

Não parafraseamos Ney Matogrosso, mas captamos a mensagem. Particularmente, não pude conhecer a atuação do BNDES como cidadã ou militante – políticas econômicas sobre o grande capital não interessam nessa formação -, apenas pude compreender seu desempenho numa abordagem específica em história econômica latinoamericana num núcleo de pesquisa na UFRGS. O BNDES, a propósito, é o mesmo banco público que fomenta a promoção de exportações de hipertróficas firmas brasileiras que absorvem ativos de empresas nacionais menores e de países vizinhos, ampliando a divisão regional desigual do trabalho. É claro que as pessoas confundem orçamento público com banco público, mas não é esse o sintoma do distúrbio que tem a Copa como seu edema incômodo. Algo que os brasileiros podem ainda não expressar tecnicamente, mas sentem –  com o maior timbre fenomenológico – é o ressignificar do que tinham por estado e suas extensões básicas, as desafortunadas saúde, educação, mobilidade, e por aí vai. Sentem no couro, também, a transformação do futebol, fadadamente transformado em mercadoria, em que seu valor de uso é resignado ao valor de troca, desintegrando sua mágica original, mas tornando-o desejável, oneroso e objeto de sofrimento àquele que não possa pagar pelo espetáculo. Com certeza muitos, senão todos, já perceberam a amargura em que esse momento está imersa. Nem campanhas publicitárias ou hinos puderam reanimar esse espírito. Não serão ressurgidos intelectuais incitando torcidas criminosas a agredir manifestantes que poderão fazê-lo.

Mas falando em números, já superamos o conhecimento primário sobre bancos e orçamentos. Não tenho certeza se a juventude governista sabe, mas o BNDES não é como qualquer outro banco. E não foi fundado para criar vácuos financeiros, mas para além de suas funções subimperialistas, fomentar os setores produtivos. O metabolismo que sustenta esse banco é parecido com os dos demais, a própria lógica do sistema de circulação, exceto que, como o banco público que é, tem papel vital no controle inflacionário. O caixa-forte por trás dessa estrutura é o Tesouro Nacional ou o Banco Central, ou seja, o dinheiro público novamente. Isso sem mencionar que parte desses empréstimos, cerca de R$ 7,3 bilhões, foram realizados por estados e consórcios, e serão pagos com o danado do dinheiro público. Há também o investimento privado, quantia de R$ 5,6 bilhões dos R$ 28,1 bilhões totais, que se mescla em outros empréstimos de bancos como a Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil, com taxas de juros baixíssimas. Nessa festa privada, as isenções sobre as construtoras também representam cerca de R$ 329 milhões, e apenas para a FIFA R$1 bilhão em desoneração. Os números nunca me disseram muito, na verdade. Quem consultar os portais da transparência, dos estados e da União, se depara com informações conflitantes e desatualizadas. O que a juventude acéfala de extrema-esquerda, desapropriada das próprias lutas, vem alertar, é a Copa como símbolo do pacto com o grande capital, que gera conseqüências monstruosas para as nossas áreas de carência. Isso o PT não inventou, mas também não expurgou ou condenou. Pelo contrário, deu as mãos a essa lógica voraz nacional-burguesa e virou as costas para as 170 mil pessoas removidas pela tríplice fascista estado-polícia-construtoras e cinco trabalhadores mortos pelas precariedades das obras. Existe uma tendência esquizofrênica em tornar o Partido dos Trabalhadores um superego vítima resignada dos ataques de todos os lados. Há de se fazer justiça: a culpa não é somente dele. É a conseqüência de um arrolar neocolonial e neoliberal desastroso, mas que unido à camuflagem populista, fisiologista e agudamente capitalista do PT se transformou no verdadeiro caos. Parece até um sentimento megalomaníaco, mas está fundado em algo atroz: a decepção.  Os fundadores que passaram pela autocrítica e se decepcionaram já se foram, ficaram aqueles alinhados ao grande projeto de permanência.

Os insatisfeitos não têm gênio para compreender as contradições do nosso país, mas as defesas continuam a não mencioná-las. Dispensarei os elogios àquilo que sempre admirei como pauta de luta e avanço, pois quem é incapaz de avaliar, também não pode aplaudir. Mas concordo com esse grito. Vai ter copa, sim. Mas melhor seria que não tivesse. As contradições, que nos demoram tanto a ser expressas, irão irromper por todos os guetos e avenidas e a festa dos poucos vai ser o som da fúria do crepitar do fogo, poeira dos camburões e berros dessa gente nunca ouvida. 

A autora Elisabeth Zorgetz é ilheense, membro do Coletivo Reúne Ilhéus, escritora e graduanda em História na UFRGS. É membro do Núcleo de História da Dependência Econômica na América Latina e trabalha a prospecção de estratégias focais de reforma agrária no sul da Bahia